domingo, 8 de janeiro de 2012

FRAGMENTOS


Uma pessoa acorda e passa o dia no trabalho, como a maioria das pessoas que conhece. Chega em casa, janta com a família, assiste às desgraças noticiadas no jornal e em seguida absorve imóvel a trama de sua novela favorita. Ao se deitar, imagina como é feliz por sua vida ser tão diferente do noticiário e porque finalmente a protagonista da novela consegue encontrar seu amado após um terrível acidente de carro que o deixara cego e paralítico. “Sim, minha vida é boa!” pensa e dorme.
Aos sábados vai ao supermercado, ao shopping e quem sabe a um churrasco com os amigos, onde todos ouvem as mesmas músicas vazias que são hits nas rádios, fazem piadas sobre futebol, comentam a novela...
Finalmente no domingo, assiste aos programas sem conteúdo, ri das pegadinhas imbecis e ouve o depoimento da celebridade do momento, imaginado que sua vida seria muito melhor se tivesse a mesma fortuna.
Em outro ponto da cidade, a socialite prepara a festa de aniversário de sua cadela enquanto dá uma entrevista detalhando o evento para uma famosa revista de futilidades. Seu filho mais velho relaxa no iate da família enquanto o outro cursa uma universidade no exterior. Não sabe quantos pares de sapato tem, mas sabe quantas plásticas já fez. Costuma freqüentar festas beneficentes, acreditando que sua contribuição faça alguma diferença. Ao se deitar, pensa no sentido de sua vida e a idéia de suicídio lhe parece tentadora, mais uma vez.
Lá do alto, um político contempla sua ilha particular recém-adquirida com o dinheiro desviado de verbas para construção de casas populares. Pensa em o quanto é bom viver em um país de otários que agem como um rebanho de gado. Já dizia a música: “Eh, vida de gado! Povo marcado, eh, povo feliz!” Ele se sente mesmo muito feliz e sabe que ainda poderá roubar muito mais, já que o povo não se importa desde que tenha sua novela e suas músicas para dançar.
Em algum momento da semana que passou, todos eles circularam pelo centro da cidade e ignoraram a presença de Miguel. Qualquer outra pessoa também preferiria ignorá-lo. Miguel tem 11 anos e vive nas ruas há um ano, desde que atirou em seu irmão menor enquanto brincava com o revólver do namorado de sua mãe. Ela não quer mais saber dele. Hoje, ele só gostaria de dormir em sua cama, sem ter medo de ser morto. Amanhã pensa em como conseguir algo para comer. Nos finais de semana, quando as famílias costumam lotar os restaurantes, ele imagina que um dia terá sua própria família e que cuidará bem de seus filhos, como sua mãe não o fez. Por alguma razão, ele tem esperança de que um dia as coisas possam melhorar.
Eu observo imaginando se poderia fazer alguma coisa para mudar o mundo, ignorando a inércia que me impede de promover mudanças bem menores, dentro de mim.
“A ignorância é uma benção”. O gado marcado ignora que as coisas poderiam ser diferentes e já está tão condicionado à sua situação, que mesmo que não houvesse mais cercas, não saberia o que fazer “Não voam nem se podem flutuar”. Mesmo assim, a sensação de pertencer a um grupo, faz com que todos se sintam seguros. Riem quando alguém diz que devem rir. Dançam e cantam sem nada questionar, porque não sabem que existe outra opção. Alguém diz que são felizes e eles aceitam. A vida é mais fácil dessa forma.
Eu nunca me senti parte disso. Sempre quis ser diferente e me irrita assistir a tudo sentindo uma vontade enorme de gritar e chacoalhar cada um. Mas não faria diferença.
Também não é uma vantagem ser diferente. Talvez fosse mais feliz se fosse igual ou ao menos ignorasse toda mediocridade que assola o mundo. Não sou melhor, nem de longe... Não tenho as respostas nem para os meus problemas. Só gostaria que as coisas fossem diferentes. É fácil observar e analisar o problema alheio, assim, ao menos por alguns instantes, você consegue ignorar seus próprios problemas ou fingir que não estão lá. O fato é que todo mundo os tem. Uns ignoram, outros procuram soluções sem nunca encontrarem e alguns poucos conseguem solucioná-los e partir para os próximos. É assim que é, não tem jeito e ao menos nesse ponto, somos todos iguais: cada um com seus problemas!

Um comentário:

Gazy Andraus disse...

Interessante reflexão acerca da situação social e individual, e depois social, de cada um. Como dizia Jung: "a individuação não exclui o universo. Ela o inclui".
Continue com textos assim e reflexões idem...a partir da reflexão, e do texto, há a conscientização das pessoas como um passo inicial a se tornarem cônscias do que você descreve: a alienação delas. A arte também faz isso (e escrever é uma arte). E as HQs de uma linha peculiar, também.